A Europa diante da maior crise de refugiados desde a 2ª Guerra
Começamos por alguns números. Segundo a Acnur, neste ano 60 milhões de pessoas saíram de suas casas. O conflito sírio é um dos mais sangrentos, tendo provocado mais de 4 milhões de deslocados. Desses 60 milhões, os países subdesenvolvidos acolhem 86% do total. No caso da Síria, o Líbano recebeu 1,1 milhão; a Turquia, 1,8 milhão, e a Jordânia, 600 mil, sendo os países que mais acolhem cidadãos sírios. No caso do Líbano, esse 1,1 milhão equivale a um quarto da população. Hoje, uma em cada quatro pessoas no território libanês é um refugiado sírio.
A Europa não poderia ficar à margem de uma crise de tal magnitude. Somente em 2015 já chegaram à União Europeia cruzando o Mediterrâneo 300 mil pessoas entre imigrantes e refugiados, um número que já ultrapassa os 219 mil que fizeram o mesmo em 2014 (dados da Acnur).
Podemos afirmar com toda certeza que a Europa não está à altura da dimensão da tragédia. E mais, algumas medidas adotadas pelos governos europeus supõem uma autêntica afronta aos direitos humanos e à lei.
Primeiro, em relação aos naufrágios no Mediterrâneo. Depois da tragédia de Lampedusa, na qual morreram 700 pessoas no último mês de abril, a sociedade civil passou a exigir que se colocasse em marcha a operação Mare Nostrum de salvamento no Mediterrâneo, com o objetivo específico de rastrear possíveis naufrágios. Uma missão parecida com a que a Itália pôs em marcha em 2014, que chegou a salvar 155 mil vidas e que foi suspensa por falta de apoio econômico da UE, apesar de seu custo ser pouco maior que 100 milhões de euros anuais. O Parlamento Europeu exigiu em sua última reunião, em abril, que fosse realizada a Mare Nostrum, após uma emenda ter sido apresentada pelo Grupo Verde no Parlamento Europeu.
Ouvidos moucos. Na reunião desse mesmo mês decidiu-se tão somente ampliar as capacidades da Frontex, sem modificar seu mandato. Isso significa que as suas patrulhas só resgatam embarcações em apuros se receberem uma chamada de emergência, igual à obrigação que tem qualquer embarcação pela lei do mar. Mas não existe uma missão específica de buscar e resgatar. A diferença é importante: frente às 155 mil vidas que a Mare Nostrum salvou no ano em que estava funcionando, Tritón de Frontex salvou 20 mil em seus quatro primeiros meses de funcionamento.
Além disso, neste mês de agosto a Frontex alertou que os Estados membros sequer estavam proporcionando o material necessário com que haviam se comprometido na última reunião. Tinham somente fornecido 16% do material e 20% do pessoal. Ao final, Ongs como Médicos sem Fronteiras acabaram disponibilizando seus próprios meios e embarcações diante da passividade dos governos.
O resultado é conhecido: neste ano morreram mais de 2 mil pessoas tentando cruzar o mar. Com a chegada do tempo bom, as tentativas de fazer a travessia se multiplicam. Assim como as tragédias. Há meses que se sabia, e não se fez nada, um abandono de funções de caráter criminoso.
Em relação à política de asilo e refúgio, não podemos dizer que a União Europeia tampouco tenha atuado como deveria. Ante a chegada de refugiados, a reunião de 25 de junho decidiu que a Europa iria realocar, principalmente na Itália e na Grécia, 40 mil pessoas, e ofereceria 20 mil locais de reassentamento (lugares onde os refugiados que se encontram fora do território comunitário possam acessá-lo), em um prazo de dois anos. Note-se o ridículo destas cifras comparadas com a dimensão que mostram os dados globais mencionados no início do artigo.
Na reunião de ministros do Interior celebrada um mês depois para executar a decisão, não se alcançou a meta. Os locais realmente oferecidos pelos Estados membros contemplaram 32 mil pessoas. A Espanha ofereceu a singela cifra de 1,3 mil locais para realocação e 1,5 mil em reassentamento.
A única boa notícia que recebemos nestes dias foi o gesto do governo federal alemão de suspender a aplicação do regramento comunitário Dublín II, que estabelece que os refugiados devem pedir asilo em primeiro lugar no país de chegada na UE. A Alemanha vai analisar solicitações de refugiados que chegaram primeiro na Grécia e Itália.
A sucessão de decisões de parte dos governos europeus que presenciamos nos últimos dias beira a barbárie: o governo filo-fascista de Viktor Órban, na Hungria, construiu uma barreira de espinhos em toda sua fronteira com a Sérvia; os governos eslovacos e polonês chegaram a declarar que só estão dispostos a acolher refugiados cristãos, os ataques aos centros de refugiados na Alemanha se multiplicam.
O caso da Espanha é flagrante. À recusa do governo em participar como recomendado na acolhida de refugiados somam-se declarações ofensivas como a do ministro do Interior afirmando que os refugiados eram pouco mais que “um problema de vazamento” que tinha que ser consertado. A Espanha foi um dos países que mais se opuseram ao estabelecimento de uma operação Mare Nostrum pelo efeito “chamada” que poderia produzir, nas palavras do ministro. Uma falácia, pois não existe tal efeito “chamada” sem o efeito “expulsão” que a guerra produz.
A essa “impressionante” contribuição espanhola deve-se acrescentar o costume do governo Rajoy de violar sistematicamente a legislação internacional e europeia com a prática constante das famosas “devoluções a quente”, que implicam na expulsão dos refugiados do território espanhol sem atender sua demanda de asilo (prática habitual em Ceuta e Melilla), uma clara violação da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e dos regramentos e diretivas do sistema comunitário.
A União Europeia está se afogando em sua própria miséria. Não tem instrumentos jurídicos e sobretudo vontade política de enfrentar este desafio.
A pergunta que devemos responder de imediato é se, diante desta crise sem precedentes nas últimas décadas, temos, europeus, a capacidade ou não de acolher mais refugiados. Se tomarmos os dados da Eurostat de 2014, foram concedidos na UE 104 mil estatutos de refugiado, 60 mil proteções subsidiárias e 20 mil autorizações de residência por razões humanitárias: no total, 184 mil pessoas. O número não alcança 0,04 da população da União Europeu. Se compararmos com alguns países do entorno da Espanha, dizer que não temos capacidade de acolhida é ridículo. Estamos frente a um gigantesco gesto de cinismo e falta de solidariedade.
Evidentemente poderíamos andar por outro caminho. A UE poderia começar, por exemplo, por assumir o montante de 100 mil pessoas no reassentamento que foi solicitado à Acnur para a crise síria. Poderíamos implantar de imediato os procedimentos administrativos necessários nos pontos de chegada para atender às solicitações de asilo dos cidadãos, assim como equipes de primeira assistência diante da fome, sede e a fadiga que essas pessoas enfrentam, muitos com crianças a tiracolo. E uma política de realocação ativa com uma repartição solidária da acolhida entre os Estados membros. E cumprir a resolução do Parlamento Europeu e colocar de uma vez por todas em ação um Mare Nostrum Europeu de salvamento marítimo.
Uma excelente iniciativa a ser considerada foi lançada pela prefeita de Barcelona, Ada Colau, ao criar uma rede de cidadãos para acolher refugiados.
A médio prazo, a reforma do sistema de Dublin é imprescindível. A política de asilo não pode se converter, como temos visto nestes dias, em uma questão de disputa de marketing entre governos. Falta avançar para uma política comum, plenamente fiscalizada pelo Parlamento Europeu. Após o fracasso da reunião de julho, ouvir Juncker dizer em um recente artigo no Le Figaro que não era necessária uma nova reunião na UE para abordar a questão beira o ridículo. Se não era necessário fazê-la depois do que ocorreu, quando será?
A atitude da UE e dos Estados membros ante a crise é criminosa, com muito poucas exceções. É chegada a hora de fazermos desta crise humanitária uma prioridade de ação política da esquerda europeia nos próximos meses.
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